sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma máscara; Dois sorrisos

Acontece direto de olhar pra uma pessoa e ver o rosto de outra pessoa. O rosto, o cheiro e a voz. Aí vem a vontade de chamar o nome pra ver se é o mesmo. A boca começa abrir, as palavras começam a formar e, quando estão prontas para sair, percebo que era apenas uma ilusão. Já não é o mesmo rosto, o mesmo cheiro, nem a mesma voz. Mas o nome saiu da boca e a minha própria voz já não me pertence.

Tento me esconder, como se pudesse ficar invísivel; como se conseguisse fazer a minha voz ficar muda. Quando ergo meus olhos na direção percebo que era realmente a pessoa que chamei. Mas não é o mesmo rosto, nem o mesmo cheiro. E já não há voz. Há um silêncio. Dois.

Vejo teu rosto na minha frente, parece diferente mas sei que é o mesmo. Sempre foi o mesmo. Aí tu sorri. Um sorriso que eu desconheço, que eu nunca havia visto no teu rosto. Como o sorriso de outra pessoa. Desejo que, além do sorriso, teu rosto inteiro se transforme em outra pessoa e que tu volte a ser uma ilusão.

Continuamos ali - com olhares; com silêncio - esperando que o outro diga alguma coisa. Esperamos. Não há o que dizer. Começo a achar graça na situação. Minha cabeça vê inúmeras cenas daquelas que acontecem nos filmes. A graça começa achar meus dentes e eu não consigo impedir um sorriso. E te olho. Tua mão começa a subir em direção ao rosto e com rapidez arrancar o sorriso do rosto, segurando-o na mão. Meus olhos correm em direção à tua mão e ao teu sorriso. Uma máscara. Volto a olhar teu rosto, te reconheço.

Vejo o mesmo rosto que eu chamará minutos antes. Vejo um sorriso conhecido, sinto o cheiro e espero pelo som de alguma palavra. Ainda assim, não há palavras. Só há sorrisos. O meu e o teu - sem máscara alguma. O teu sorriso já me basta, mesmo no silêncio das nossas bocas abertas.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Nossa Canção

Chegamos à um momento que não havia mais nada a fazer. Tudo estava pronto. Era só continuar e cuidar pra que continuasse assim, pra sempre. Mas não era o suficiente. Queríamos mais, eu queria mais. Ainda não sei o que tu queria.

A: O que você quer?

Eu queria mudar aquela coisa feita-embalada-vendida que compramos em um feira de segunda, e torná-la feita e embalada ao ritmo da nossa música. Com no máximo 4 notas e algumas variações de tempo. Acontece, que meus acordes não cabiam no alcance das notas agudas da tua voz.

Tua voz tirava minha concentração e eu me perdia nas menores notas e tornava o nosso som uma bagunça sonora. Tuas palavras sempre saiam com uma velocidade e força que as cordas do meu violão não conseguiam suportar e estouravam, cortando minha mão. Eu continuava tentando acompanhar teu ritmo com o sangue escorrendo dos meus dedos e com tamanha dor que só acalmava quando você começava cantar aquele refrão.

O refrão acaba e começa outro verso. Verso-Ponte-Refrão-Verso-Refrão. Eu teimava eu colocar mais uma ponte antes do refrão repetir, mas você sempre pulava do verso pro refrão afirmando ter medo de a ponte desabar. Pulamos a ponte e fomos para o refrão novamente.

A dor nos meus dedos acalmava a cada acorde, a cada batida que a palheta dava na corda, a cada palavra que a tua voz cantava. Acabou o refrão mais uma vez e tu esqueceu de escrever outro verso e eu esqueci de compor mais algumas variações de notas pra música continuar. Tua voz não saiu e eu parei de forçar minha mão arrancar sons das cordas que restavam. Ficamos em silêncio procurando por outras palavras pra tentar continuar, e quando encontramos algumas palavras perdidas já havíamos esquecidos o ritmo da música. A música parou, e a nossa canção não disse mais nada.

B: Eu quero tudo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Brincadeira Infantil

Acho que eu cansei de te escrever,
e você parou de abrir minhas cartas.
Acho que tu cansou de me ouvir,
e eu parei de te ligar.
Acho que cansamos de nos encontrar,
por não conseguirmos nos achar.
Procurei não perder você,
mas tu parou de encontrar.
Acho que parei de me esconder,
mas agora parou de brincar.
Eu continuo no mesmo lugar - onde você não está.

Túneis

"Eu sei quem é você, eu conheço o que há dentro de você."
Não, tu não sabe.

Você esteve aqui dentro por algum tempo, caminhando por todas as minhas veias, dando leves passos e deixando pegadas por dentro dos meus pulsos, braços, pernas, cabeça... Andou tanto por aqui que acabou se perdendo - eu achei ótimo. Minha intenção era segurar você aqui pra sempre, andando por dentro das minhas veias; fazendo meu sangue circular.

Tu, aqui de dentro, começou gritar em desespero por passar pelos mesmos lugares tantas vezes e não saber onde estava indo, eram tantas veias e você pegava qualquer bifurcação e acabava se perdendo mais ainda. Em todo teu desespero, começou a correr, e não havia mais gritos a não ser o eco dos teus pés me pisoteando e a tua respiração ofegante.

Você andava por todo meu corpo e isso me deixava inquieto, sem saber se continuava com você por aqui ou se te mostrava a saída, mas você fez algo muito melhor. Passou por todos os lugares sem restrições, sem placas de "pare!" ou faixas de "não ultrapasse", até dar de cara com uma porta fechada. "Não entre". Aviso único. Você parou. Ficou ali observando a porta com uma cara de quem não-sabe-o-que-fazer. Mas tu fez justamente o contrário do que era dito e o mais correto a ser feito, abriu a porta e entrou.

Entrou de maneira tão suave que teus passos eram leves e a tua respiração já estava normal. Tu já não estavas mais perdida e, por fim, chegará ao único lugar que tu nunca havia estado. O lugar onde todo meu sangue deveria ter te levado há algum tempo se você tivesse deixado e não insistisse tanto em andar sozinha. O lugar que você achou tão sem graça por estar vazio e escuro, e acabou saindo e fechando a porta novamente. Tu mal sabes que faltava você estar realmente aqui dentro pra que as luzes acendessem e transformassem esse lugar na mais bela casa que você poderia ter.

Aí você começou a percorrer minhas veias novamente, e os passos que antes eram agradáveis, agora se tornaram passos graves que machucam por onde você passa. Já não é mais cômodo te deixar aqui dentro, mas você está tão perdida aqui que eu não consigo te encontrar pra te tirar desse meu sofrimento, não me conheço tão bem quanto você. Não conheço todos os lugares que você passou por dentro de mim, mas eu conheço o mais importante, e te conheço também, estranha.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

7 de Setembro

Eu de braços aberto. Tudo que eu lembro é isso. Eu e a merda dos meus braços abertos. E tudo que eu não quero lembrar é você. Você e a merda dos meus braços aberto. E a merda dos meus braços que continuavam abertos esperando por algo. Que merda pensei quando abri os braços? Ah! Quatro letras.

Daí meus braços baixam e aparece a tua boca aberta e algumas palavras tentando formar algum som. O som das bandas marchando foi mais alto e eu não escutei nada. Não precisava. Sabia toda e qualquer palavra que tu dizia, até com os olhos fechados. Sabia em qual sílaba a tua voz iria falhar e em qual ela voltaria a ter segurança. Eu sabia disso. E tudo que eu escutava era a merda dos tambores me deixando surdo.

Aí eu abri os olhos, depois que tu havia parado de falar. O som dos tambores continuava, as pessoas marchando em suas filas mal organizadas, crianças andando feito zumbis, e os cachorros vira-latas perdidos e com medo. Abri meus olhos e não vi nada disso. No momento, qualquer outra coisa que estava ali simplismente parecia ter desaparecido. Não havia ninguém ali. Só eu, meus olhos abertos, sem saber aonde olhar e meus braços perdidos tentando encontrar algo pra segurar. E você. Mas você já não estava ali.

Continuei parado tentando encontrar qualquer outro movimento ao meu redor para que me trouxesse de volta, qualquer coisa. Sentia como se algo estivesse vazando: o ar de um balão furado, pingos de uma torneira aberta, o sangue de um corte. Uma lembrança da memória. Qualquer coisa assim, que vai embora. Eu estava todo nesse sentimento. Tua presença foi embora, tua boca aberta, tuas palavras sem som algum, meus braços nem tentaram te puxar de volta.

De repente eu vi tudo ao mesmo tempo, as pessoas, os tambores e qualquer coisa que estivesse ali em algum momento. E escutei tudo também, todo som minúsculo. Toda essa merda. Todas as coisas ao meu redor, como se eu fosse o único a estar ali. Eu era único. E eu estava parado. Com todos os outros olhares vazios, com todas as outras palavras mudas, com todo o meu corpo sentindo frio. Com meu peito aberto, vazando. Sem você, indo embora.

sábado, 4 de setembro de 2010

Cigarros

Começa com aquele fogo e toda aquela fumaça e cheiro do papel queimando. A mão leve em direção à boca meio aberta. Os dentes amarelos, a respiração vazia. O pulmão cinza. O papel queimando. Fumaça. Teus olhos observam tudo isso enquanto a fumaça passa em frente a eles, deixando-os pouco irritados. Vão gravando cada detalhe como se tudo estivesse em câmera lenta. A fumaça se desfazendo no ar, o papel enrolando a química enrugando aos poucos, o suor da tua mão. Tu percebe os detalhes dos lugares ao redor de você, mas isso não se torna importante. O cigarro é a coisa mais importante no momento. O fogo.

A importância vai diminuindo e observar esses detalhes jogados na tua cara se tornam ações já executadas; o fogo vai apagando-queimando no papel, o pulmão mais cheio, a cigarro cada vez menor. A fumaça no ar e as outras coisas não importantes.

Dali um pouco a gente queima o dedo e joga fora. Tu não percebeu a velocidade com que o fumo diminui entre o teu indicador e o dedo de vai-tomar-no-cú - com acento - e, começou olhar uma guria do outro lado da praça, caminhando. Ela caminha e o teu cigarro continua a diminuir na tua mão, mas teu olho não observa isso. Então o calor entre os dedos transforma-se em uma leve ardência: tá queimando. Tu olha e ao perceber o fogo rasgando a pele tu joga o cigarro no chão e diz qualquer palavrão pra aliviar a sensação do inferno dentro da tua mão. Tu volta a cabeça em direção à guria, mas ela não está mais ali.

A boca fechada. Sem fumaça. Só o pulmão cinza. Um cigarro no chão. Uma boca vermelha. Dois dedos queimados. Uma guria que não está mais ali. Só isso. Você pega a caixa do bolso e acende outro cigarro. Quem sabe outra guria apareça. Quem sabe a guria de antes resolva voltar. Tu já se queimou do mesmo jeito.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Conta Vencida

Chega o carteiro. Todas correspondências dentro de uma sacola com várias outras cartas e contas que vão para outras pessoas em outras casas. Você vê ele retirar alguns papéis, conferir o que provavelmente é o número da casa, tirar o elástico que prende os envelopes separados dos outros e deposita-os na tua caixa de correio. Aí você espera ele se afastar.

O ronco da moto amarela é rapidamente direcionado ao outro lado da rua, onde ele faz a mesma seqüência de tarefas. Coloca as cartas ou contas da outra pessoa e passa para a casa ao lado, onde fará a mesma coisa mas tu não se interessa mais pela repetição das atitudes nem dos envelopes.

Teu interesse agora passa a ser a caixa de correio. Não a caixa de correio, mas o que dentro dela. E ali dentro tem algo teu. Você sai da janela, fecha a cortina e toma rumo em direção ao lado de fora da tua casa, passando por um corredor comprido que te entrega à sala. Tu para na sala e com certo medo, teme abrir a porta e ir lá fora receber tuas correspondências; teme abrir a caixa de correio; teme abrir as cartas. Teme qualquer abertura que traga aquilo que está lá fora esperando.

Tu recuperas tua coragem e abre a porta, o primeiro passo. Esquerdo. Em seguida o direito. Teus pés seguem o rumo como se estivessem acostumados com a tarefa de ir até a casinha cheia de papéis, tuas mãos abertas é que não estão acostumadas a abrir esses papéis. E dessa vez elas terão utilidade. Teus olhos também estão abertos, prontos para quando a sua vez chegar.

Você abre a tampa e os papéis estão ali, brancos feito leite. Você sente o calor deles. Você sente eles te queimando as mãos, os olhos, o peito - sim, o peito está aberto também. Você volta pra dentro de casa pela porta aberta. E você fecha a porta.

Você vai até a cozinha e joga os papéis em cima da mesa, fitando-os por algum tempo com aquele medo anterior. Aí você separa alguns e coloca-os de um lado - as contas. Você abre o único que não está te cobrando nada, e o preço que tu vai pagar por este é alto demais. Não há dinheiro suficiente. O dinheiro nem é suficiente.

O papel aberto tem tamanho valor que tu se recusa a pensar nas contas. O peito aberto como um cofre vazio tem tantas teias que tu nem sabe se houve algo valioso ali dentro. Você pensa aonde você gastou tanto sentimento, e porque tanto prejuízo. Talvez tenha sido a falta de investimento. Ou tu apenas tenhas tentado encher o outro cofre - aquele que não era teu. Mas tu tens que pagar por essa conta. E o preço que se paga, às vezes, é alto demais. Talvez um perdão quite a dívida. Se não for uma conta vencida, claro.

Dá uma olhada na data, te apressa. Cuidado com os juros.

Parte Cinco - O Assobiador

Os Jogadores
(um dado de sete lados)

[...]
Sete.
Você joga o dado e o vê chegando, e percebe com clareza que não se trata de um dado comum. Diz que foi azar, mas sabia o tempo todo que ele teria que vir. Você o intrduzio na sala. A mesa farejou-o em seu hálito. O judeu projetava-se de seu bolso desde o começo. Sujou sua lapela e, no momento de jogar, você sabe que é um sete - a única coisa que, de algum modo, encontra um jeito de feri-lo. O dado cai. Fita você nos dois olhos, miraculoso e repugnante, e você desvia o olhar enquanto ele lhe devora o peito.
Um Simples azar.
É o que você diz.
Sem a menor importância.
É nisso que você se faz acreditar - porque, no fundo, sabe que essa pequena mudança de sorte é um sinal das coisas que estão por vir. Você esconde um judeu. Você paga. De um modo ou de outro, tem que pagar.
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Markus Zusak, 2006 - A Menina Que Roubava Livros